Pode até começar com uma piada. Um meme. Um comentário de WhatsApp. Mas o que termina sangrando, quase sempre, é alguém. Por dentro ou por fora.
A cena é mais antiga, mas que ainda dói de lembrar, é aquela dos carros desfilando com adesivos grotescos ao redor da entrada do tanque de combustível. O desenho? Uma caricatura da presidenta Dilma Rousseff, de pernas abertas, numa posição que transformava o ato de abastecer o carro numa encenação de violência sexual. A piada, se é que merece esse nome, misturava misoginia, humilhação e uma violência simbólica que nunca teve paralelo quando o presidente era homem.
O combustível subia, sim. Mas o ódio de gênero subia junto. E curiosamente, quando a gasolina passou dos sete reais no governo Bolsonaro, ninguém colou adesivo algum. Ninguém transformou o então presidente em alvo de pornografia visual nas ruas. A explicação é óbvia: o problema nunca foi só o preço do combustível. O problema era o fato de ser uma mulher no poder.
Anos depois, a fórmula permanece a mesma, apenas com novos protagonistas e novos palcos.
Em maio de 2025, a ministra Marina Silva foi à Comissão de Infraestrutura do Senado para uma audiência técnica sobre meio ambiente. O que deveria ser um debate virou um espetáculo de grosseria pública.
Teve senador cortando o microfone. Teve parlamentar mandando-a se pôr no seu lugar. Teve quem dissesse que a mulher merece respeito, a ministra, não.
E, pra fechar o pacote, um senador confessou, ao vivo, que passou seis horas e dez minutos com vontade de enforcá-la. A Procuradoria-Geral da República, num salto triplo de relativização, decidiu que isso não configurava crime. Porque, aparentemente, no Brasil, quando o alvo é uma mulher em posição de poder, até as ameaças ganham o selo da impunidade.
Marina reagiu como sempre reagiu: com firmeza e dignidade. Lembrou que não era e nem nunca seria uma mulher submissa. E saiu da sessão com a cabeça erguida. Mas o episódio ficou como mais um lembrete: toda vez que alguém tenta calar uma mulher, o que está em jogo é muito mais que um microfone desligado. É o direito de falar. De existir. De ocupar o espaço que lhe é de direito.
E como a criatividade para humilhar mulheres parece inesgotável, 2025 traz ainda uma nova camada de misoginia, desta vez travestida de meme.
Justamente enquanto o mundo acompanha, em tempo real, os ataques recíprocos entre Irã e Israel, surge nas redes brasileiras uma piada que mistura machismo, preconceito estético e oportunismo político: a tal da doação de canhões de Lula para o Irã, o que no literal configura uma notícia falsa.
A ironia perversa? No lugar de armamento militar, canhões se refere a mulheres petistas consideradas fora do padrão. Um trocadilho tosco que transforma um conflito geopolítico real numa desculpa para atacar o corpo feminino.
A lógica é sempre a mesma: onde há guerra, onde há tensão, onde há manchete internacional, sempre haverá alguém disposto a desviar o foco e transformar mulheres em munição de chacota.
Se sobra misoginia e xenofobia, a transfobia completa o pacote.
Deputadas como Erika Hilton, de São Paulo, e Duda Salabert, de Minas Gerais, ambas mulheres trans eleitas com votações expressivas, enfrentam ataques diários. São insultos, ameaças e tentativas explícitas de silenciamento.
Só em 2024, as duas receberam centenas de mensagens com teor transfóbico. Muitas dessas agressões não vieram de anônimos em redes sociais. Vieram de dentro da própria Câmara. Não é só violência virtual. É institucional. É política.
Quando não conseguem vencer pelo argumento, tentam vencer pelo constrangimento.
E, como se tudo isso já não fosse suficiente, a homofobia também faz questão de ocupar espaço.
Aqui em Ponta Grossa, em pleno 2025, um professor de uma Instituição de Ensino Superior precisou pedir desligamento depois de se tornar alvo de uma situação que hoje é investigada como possível caso de homofobia.
O que começou com uma discussão em sala de aula sobre a Lei Maria da Penha foi ganhando contornos cada vez mais tensos. O aluno envolvido questionou o conteúdo, se disse constrangido em outro momento e, durante uma aula seguinte, a tensão se agravou. O professor, sentindo-se desrespeitado e exposto, decidiu sair. A situação gerou sindicância interna, inquérito policial e acompanhamento pela OAB.
No fundo, tudo isso tem a mesma raiz.
É a velha tentativa de desumanizar o outro. Reduzir mulheres a caricaturas sexuais. Reduzir o Nordeste a um erro de mapa. Reduzir pessoas trans a alvos de ódio. Reduzir professores a inimigos ideológicos. Reduzir qualquer identidade que escape do padrão ao lugar do inimigo público.
Porque quando o debate vira ataque ao corpo, à origem, à aparência ou à identidade, a gente deixa de discutir ideias e passa a negociar o básico: o direito de existir. A pergunta é séria. Quando foi que a gente começou a achar isso aceitável? E mais ainda: Quando é que a gente vai ter coragem de parar?
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