Quando o médico não especialista precisa conversar sobre saúde mental

A importância do reconhecimento de transtornos mentais por profissionais de saúde não especializados.

Profissionais de saúde não especializados desempenham papel crucial no reconhecimento de transtornos mentais.

O Brasil ocupa uma posição preocupante em relação à saúde mental, apresentando alta prevalência de transtornos ansiosos e depressivos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Com mais de 18 milhões de brasileiros afetados, essa questão se torna um dos principais desafios de saúde pública no país. No entanto, a disponibilidade de psiquiatras é alarmantemente baixa, com apenas 6,6 profissionais para cada 100 mil habitantes, o que é claramente insuficiente diante da demanda crescente.

Um estudo longitudinal que avaliou pacientes diagnosticados com ansiedade ao longo de quatro anos indicou que a psiquiatria não é a primeira especialidade procurada. Na maioria das vezes, esses indivíduos buscam atendimento em áreas como cardiologia, ginecologia, oftalmologia e ortopedia, antes de serem encaminhados a psiquiatras. Essa trajetória reflete a complexidade dos sintomas apresentados, que muitas vezes se manifestam fisicamente, dificultando o diagnóstico adequado.

Sintomas como dor torácica, taquicardia, dispneia e cefaleia são apenas alguns exemplos das manifestações físicas que podem levar os pacientes a diversas especialidades médicas, escondendo a verdadeira origem psiquiátrica. O subdiagnóstico de transtornos mentais em serviços não especializados é um problema bem documentado, resultando em atrasos significativos no diagnóstico. Dados do estudo revelam que 45% dos pacientes permanecem com sintomas por pelo menos dois anos antes de receberem o diagnóstico correto, frequentemente sendo tratados de forma inadequada.

O desafio do diagnóstico é complicado pela natureza dos sintomas, que muitas vezes são inespecíficos. Isso leva a uma situação em que os médicos de outras especialidades não têm formação suficiente para identificar transtornos psiquiátricos em sua prática. Além disso, é comum que esses profissionais desenvolvam vieses cognitivos que comprometem a identificação de doenças mentais. Esses vieses incluem a tendência de focar apenas na sua área de especialização, ignorando outras possibilidades; a confirmação de hipóteses iniciais sem considerar alternativas; e a supervalorização de doenças que já encontraram em sua prática clínica.

Diante dessa realidade, é essencial que médicos não psiquiatras estejam cientes de seus próprios vieses e se mantenham atentos aos sinais de transtornos mentais, que podem se manifestar em sintomas cardiológicos, neurológicos ou gastroenterológicos. Isso não significa que todos os profissionais de saúde devam se especializar em psiquiatria, mas é fundamental compreender a interconexão entre saúde física e mental.

Embora a psiquiatria não seja sua área principal, cada profissional de saúde desempenha um papel crítico na escuta inicial e na triagem dos pacientes. Reconhecer que os sintomas podem ter múltiplas origens e adotar uma postura aberta são passos cruciais para garantir que o paciente receba a atenção necessária e, quando for o caso, seja encaminhado para cuidados especializados em psiquiatria. Essa abordagem multidisciplinar e integrada é vital para enfrentar os desafios impostos pelos transtornos mentais no Brasil.

*Fernando Fernandes é psiquiatra formado pela USP, presidente do Conselho Científico da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata), e supervisor do grupo de Transtornos do Humor do Instituto de Psiquiatria da USP.

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