O presente artigo revisita a interpretação de Clóvis Moura sobre a Revolta Farroupilha, buscando uma análise mais aprofundada do movimento. Em “Rebeliões da Senzala”, Moura dedica poucas páginas ao evento, o que impossibilita uma compreensão completa de sua complexidade social. Contudo, argumenta-se que Moura incorre em equívocos significativos ao analisar a conjuntura da província de São Pedro do Rio Grande do Sul entre 1835 e 1845. Sua principal referência, a obra de Dante de Laytano, embora valiosa na organização de fontes, é utilizada por Moura sem o devido distanciamento crítico.
Além da crítica a Moura, este texto busca estimular o debate sobre a história regional, frequentemente polarizada entre o tradicionalismo do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) e leituras superficiais da esquerda. Essas leituras, por vezes, homogeneízam a história gaúcha, ignorando suas nuances e contradições. Tal debate se torna crucial para compreendermos as raízes sociais, políticas e econômicas que moldaram a região.
A análise de Moura estabelece uma relação entre a Confederação do Equador e a Revolta Farroupilha, mencionando a presença de figuras ligadas à Confederação em solo gaúcho após a derrota militar em Triunfo. No entanto, o autor negligencia uma diferença fundamental: o separatismo original. As lideranças farroupilhas inicialmente buscavam reconhecimento e autonomia dentro do Império, com o separatismo surgindo como uma tática posterior, conforme aponta Dante de Laytano.
Moura argumenta que a Revolução Farroupilha se destacou pelo seu caráter antiescravista, facilitado pela suposta menor importância da escravidão na economia local. Contudo, essa visão ignora o peso crucial das charqueadas na economia sulina, cujo propósito era alimentar trabalhadores pobres e escravizados. Essa atividade econômica era tão relevante que a disputa por tarifas de importação do charque foi um catalisador da guerra.
Em contraste com a visão de Moura, a República Rio-Grandense manteve e se beneficiou da escravidão durante seus dez anos de existência. A proposta de abolição de José Mariano de Matos foi derrotada na Assembleia Constituinte de 1842. Embora a densidade populacional de escravizados fosse menor em comparação com outras províncias, cidades como Pelotas, centro da economia charqueadora, apresentavam altas concentrações de mão de obra escrava. A maior liderança farroupilha, Bento Gonçalves, possuía mais de meia centena de escravos quando morreu, demonstrando a complexidade da relação dos farroupilhas com a escravidão.
A menção ao decreto de 1839, que previa represálias contra autoridades imperiais que açoitassem homens de cor a serviço da República, é interpretada aqui como uma estratégia de barganha militar. Buscava-se atrair ex-escravizados para as fileiras farroupilhas, oferecendo a promessa de liberdade em troca de serviço militar. No entanto, a realidade era mais complexa, e a busca por apoio militar se sobrepunha a um compromisso genuíno com a abolição.
Ao final do conflito, a conjuntura no Prata, com tensões entre Argentina, Uruguai e o Império, permitiu aos farroupilhas negociar uma paz honrosa, mesmo estando derrotados. Concessões como a elevação das taxas alfandegárias sobre o charque importado e a anistia aos ex-combatentes demonstram a importância do Rio Grande do Sul como peça estratégica no cenário geopolítico da época. Como destaca Sandra Jatahy Pesavento, o poderio militar gaúcho foi fundamental como elemento de barganha frente ao poder central.
Em suma, a polêmica com Clóvis Moura oferece uma oportunidade para refletir, sob uma perspectiva popular e crítica, sobre a mais longa das rebeliões do período regencial. É crucial reconhecer que a Revolta Farroupilha não representou os interesses de todas as classes dominantes, encontrando resistência em importantes centros urbanos como Rio Grande e Porto Alegre. A luta, essencialmente travada entre estancieiros e o Império, careceu de propostas de transformação social profunda, como a distribuição de terras defendida por Artigas na Banda Oriental.